Publicado por Maria Célia Becattini
“Mas o que está diferente agora?”, eu quis saber. “Difícil dizer. Na verdade, apenas detalhes, coisas que podem até parecer bobagem, mas fazem diferença. Antes, por exemplo, a mulher do dono da oficina sempre colocava um coelho de chocolate na caixa de ferramentas de cada um dos funcionários na época da Páscoa. Pode ser só um gesto de delicadeza, mas nessas horas percebemos que alguém ainda pensa na gente.” Eu podia jurar que a voz daquele homem com quase 50 anos estava trêmula naquele momento. Seja como for, o coelhinho da Páscoa não veio mais, o valioso mecânico foi embora e eu, diante da dificuldade de encontrar uma oficina confiável, próxima à minha casa, terminei comprando um carro novo.
Por trás dessa pequena história, há um importante objeto de pesquisa de psicólogos: a questão sobre como surgem a satisfação e a felicidade. A esperança de inúmeros estudiosos é que, se compreendermos melhor os mecanismos que possibilitam essas sensações, seremos capazes de produzir esse estado de forma objetiva em nós mesmos.
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SENSAÇÃO DE MERGULHO: alegria imediata costuma surgir com atividades prazerosas, como a prática de um esporte ou o encontro sexual com quem amamos
Essa felicidade “artesanal” – que optamos por construir – compreende duas possibilidades que se complementam: o bem-estar atual, imediato, ligado ao momento presente; e o habitual, de longo prazo, que permeia várias instâncias da vida. A primeira forma pode ser descrita como uma experiência intensa de grande alegria. Ela inclui o desejo sexual, assim como todos os outros tipos de prazeres sensuais e vivências flow – ou seja, o mergulho intenso e entrega a uma atividade prazerosa. A sensação de relaxamento quando nos sentamos na varanda, na hora do pôr-do-sol, após um dia duro e produtivo de trabalho, ao lado da pessoa que amamos, colocamos as pernas para cima, ou o frescor estimulante que experimentamos durante um banho em uma cachoeira, também são exemplos de felicidade atual. Em todos esses casos, surge uma sensação agradável que alguns psicólogos chamam de “afeto positivo”. Muitas pessoas já descobriram que conseguem se motivar para realizar tarefas desagradáveis ao antecipar em sua mente a sensação boa que as preencherá após o término bem-sucedido da atividade.
Embora muita gente subestime sistematicamente os detalhes e as pequenas gentilezas, tanto na vida privada quanto na profissional, um meio bastante eficiente para a criação de afetos positivos é a atenção social: um sorriso, um elogio sincero, palavras gentis – ou mesmo um coelhinho de chocolate na Páscoa. O problema é que muitos aprenderam a se relacionar segundo um princípio que lhes parece lógico: “Se eu gosto de você, não preciso lhe dizer. Quando não gostar mais, então eu lhe digo”. Ou segundo um provérbio alemão da Suábia, que corresponderia a afirmar: “Não reclamar é o mesmo que elogiar”. Será mesmo? Essa parece ser a linha, avessa ao reconhecimento do empenho e dos bons resultados, adotada também em inúmeras empresas. No entanto, um bom ambiente de trabalho não surge, por exemplo, só porque se organiza, uma vez por ano, um encontro entre os funcionários, mas é construído muito mais com base em vários pequenos momentos que oferecem vivências de felicidade atual.
O caso do meu mecânico e seu coelho da Páscoa mostra o quão decisivos podem ser esses detalhes que fazem com que a pessoa se sinta vista e valorizada – o que nos faz pensar que poderia ser bastante produtivo que as empresas se preocupassem em manter uma cota de dedicação social. Com um gasto financeiro mínimo já seria possível elevar sensivelmente a satisfação dos trabalhadores e, com isso, o rendimento no trabalho. O mesmo vale para a convivência na família e com o parceiro. Gestos como enfeitar a casa com flores, se permitir uma tarde inteira de pura preguiça ou dividir o planejamento de passeios podem despertar a cumplicidade entre entes queridos – e afetos positivos.
Uma tática bem diferente também pode gerar felicidade atual – e a redução dos afetos negativos: evitar ao máximo tudo o que não faz a pessoa feliz. Pode parecer óbvio, mas nem sempre é fácil e muitos se surpreendem ao perceber que quase sempre é possível fazer mais por si mesmo do que se imagina num primeiro momento.
Nesse sentido, desenvolvemos na Universidade de Zurique um modelo de mini brainstorming, uma pequena “chuva de idéias”. A técnica sempre é utilizada quando uma pessoa não tem nenhuma idéia para solucionar um problema, ou quando já testou todas as suas idéias sem nenhum sucesso. A sugestão é que se aproveite o potencial de outras cabeças. Para isso, propomos que se imagine um cesto, enchendo-o com as sugestões de colegas, amigos e conhecidos. Entre elas, é preciso escolher as idéias mais interessantes.
Para aplicar a “chuva no cesto” a um problema concreto, escreva primeiro detalhadamente que situação, circunstâncias e desencadeador do passado levaram a qual afeto negativo. Por exemplo, no caso de obstáculos criados por colegas de trabalho, contado por um voluntário: “Na reunião de terça-feira, X estragou minha argumentação com uma informação que apresentou na última hora, sem me avisar, em uma atitude que parece ter sido de má-fé. Como ele não entregou seus dados antes da reunião, junto com os outros papéis, não pude preparar nenhuma resposta. Todos ficaram impressionados com o diagrama – mas eu tenho certeza de que ninguém entendeu direito a proposta. Quando vi o seu sorrisinho satisfeito, fiquei com muita raiva. E o que é pior: fiquei totalmente bloqueado. Fora um número impressionante de palavrões, não consegui pensar em mais nada”.
CUECA DE BOLINHAS
Sugerimos ao voluntário que anotasse, para seu controle, a intensidade de seus afetos negativos, por exemplo, em uma escala de 0 a 100. Em nosso exemplo, a raiva receberia 70 pontos, e o bloqueio, 95. Em seguida, imaginou o seu cesto de idéias e pediu ao maior número possível de pessoas confiáveis e discretas à sua volta que pensassem em reações adequadas aos truques de X e as anotassem.
A proposta é juntar no cesto as “idéias auxiliares” – quanto mais, melhor. Além disso, é interessante buscar apoio com o maior número possível de grupos sociais diferentes. A pessoa pode pedir opinião não apenas aos colegas mais queridos, mas também a pessoas que exercem atividades bem diversas, como, por exemplo, a professora de seu filho, o pedreiro da casa vizinha – ou até à sua filha de 14 anos. Se não quiser expor detalhes da própria vida, é possível apresentar o caso como uma situação hipotética. Esses cérebros acostumados a lidar com outras áreas de conhecimento, que memorizaram experiências vividas em contextos muito diferentes, produzem freqüentemente soluções mais surpreendentes e prestativas do que as de nossos pares que, em geral, tendem a pensar de forma muito parecida conosco. Alguns se surpreendem com o número (e principalmente com a diversidade) de sugestões que surgem. O próximo passo é escolher entre as opções as ações que mais eficientemente possam reduzir o afeto negativo. Então a pessoa terá opções suficientes para o próximo golpe surpresa de X. Uma possibilidade de lidar com a situação é propor que as novas informações sejam incluídas apenas na próxima reunião e sugerir que, em vez delas, se discuta qual o prazo máximo para que os dados da reunião sejam informados antecipadamente. Outro caminho é preparar os próprios dados e, se necessário, sacá-los rapidamente do bolso. É admissível também enviar um e-mail para X (com cópia para todos os outros participantes) dois dias antes da reunião, solicitando que apresente todos os seus documentos antecipadamente. Cabe, ainda, ter em mente que às vezes simplesmente não vale a pena irritar-se. E, para evitar isso, o melhor é se distanciar internamente e relaxar – seja respirando fundo ou imaginando X de cueca de bolinhas cor-de-rosa, com um focinho de porco, uma pequena molecagem que pode ajudar a pessoa a se preservar e evitar atitudes das quais pode se arrepender depois. Apesar de, sabidamente, ser muito difícil transformar um afeto extremamente negativo em positivo, reduzir o bloqueio mental de 95 para 50 no próximo ataque de X, ou mesmo conseguir olhar para o odiado diagrama de forma relativamente tranqüila, já representa uma boa melhora.
SÓ PRARA SE AGRADAR
E a felicidade habitual, de longo prazo? Esta se manifesta como satisfação com a vida, em seus variados aspectos (relacionamento afetivo e familiar, amizades, segurança financeira, relações sociais organizadas, vida profissional, uso do tempo de lazer etc.), e depende muito do que é considerado importante para cada pessoa. O sucesso em algum desses aspectos (ou em vários deles), entretanto, não é, por si só, garantia de felicidade. Muitas pessoas vivem o “dilema da insatisfação”: simplesmente não se sentem felizes, apesar de terem boas condições de vida. Nesses casos, o desconforto costuma ter causas mais profundas e, em geral, só um processo psicoterapêutico pode ajudar a pessoa a compreender o que se passa.
Mas o caso inverso também existe, o chamado paradoxo da satisfação – felicidade subjetiva, mesmo em condições adversas. Isso nos leva a questionar até que ponto cada um pode contribuir individualmente para elevar o nível da própria felicidade habitual. Fazer o exercício de “estar presente” na própria vida e desfrutar cada momento como único (algo que de fato é), por exemplo, costuma ser produtivo. Em outras palavras: aproveitar toda oportunidade para se alegrar e desenvolver hábitos que nos tragam pequenos prazeres faz toda a diferença para a qualidade de vida. Para alguns, pode ser muito proveitoso observar o nascer do sol e sentir o aroma do café; para outros, prestar atenção à paisagem ou ouvir uma linda música durante o trajeto até o local de trabalho e desejar “bom dia” aos colegas antes de baixar os e-mails é uma forma agradável de começar as atividades diárias. Há ainda alguns cuidados consigo mesmo que, em geral, trazem bem-estar: após uma ou duas horas de trabalho, quando a concentração diminui, é importante fazer uma pequena pausa; e, pelo menos uma vez por semana, vale a pena comprar algo saboroso ou bonito (mas não necessariamente caro) para si mesmo.
Uma dica: diferente do que aprendemos (e vale para outras áreas da vida), neste caso a quantidade conta sim, e muito. O que importa é o número de pequenos desencadeadores de felicidade que trazemos para nossa vida. Ou seja: de nada adianta um fim de semana maravilhoso se os dias anteriores e os posteriores são extremamente estressantes – e o único reconforto é esperar ansiosamente pela próxima folga.
Por estranho que pareça, ter uma visão extremamente clara do mundo que nos cerca e de nossas limitações nem sempre é sinônimo de saúde. Há um século Freud chamou atenção para um fato curioso: pessoas deprimidas enxergam o mundo de forma mais realista e, portanto, acertam mais ao avaliar seu desempenho e suas chances. Otimistas, por outro lado, tendem mais a viver fora da realidade – mas sempre com um sorriso nos lábios. Isso nos leva a crer que talvez não seja prejudicial manter acesa certa dose de ilusão, embora a felicidade habitual não se baseie apenas na imaginação – ela tem base bastante concreta. Se uma questão fundamental a ser considerada é como podemos realizar da melhor maneira possível nossos desejos, esperanças e expectativas mais importantes, é preciso, antes de mais nada, saber quais são eles. Nesse caso, os chamados marcadores somáticos, sinais da memória emocional, na qual todas as experiências são armazenadas e classificadas. Essa referência mnêmica influi permanentemente sobre os dados captados do ambiente. A capacidade de uma pessoa saber o que é importante e bom para si mesma depende, em grande parte, da atenção que dispensa a essas mensagens enviadas por seus marcadores somáticos, o que ajuda na tomada de decisões fundamentais e a encontrar motivação para concretizar objetivos.
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SINAIS DO EU
Marcadores somáticos funcionam como orientadores internos: são percebidos como sensações físicas, sentimentos ou uma mistura dos dois. Embora tenham origem na experiência emocional, sua base é um agrupamento de estruturas cerebrais que memoriza e classifica todos os eventos significativos. Vivências desagradáveis, que devem ser evitadas, produzem marcadores somáticos negativos; já as experiências que provocam prazer geram sinais positivos. No fundo, a memória das experiências emocionais constitui nada mais do que o “eu” de uma pessoa – ou seja, aquilo que a torna um indivíduo e que ela sente como sua essência mais profunda, independentemente de eventuais transformações que enfrente ao longo da vida. Sob condições favoráveis, a pessoa pode atingir um nível habitual de considerável satisfação. Aqueles que desenvolvem autopercepção para registrar conscientemente os sinais de seu eu – seus marcadores somáticos – adquirem maior consciência de si e podem, com isso, estimular ativamente o seu sentimento de bem-estar, independentemente das circunstâncias externas. A longo prazo, só fica satisfeito com sua vida quem tem autonomia para fazer escolhas e arcar com as conseqüências delas, ou seja, determinar as condições para sua própria felicidade, independentemente de opinião alheia, tendências ou modismos.