POR JULIANA FIALHO
Segundo o DSM V, o diagnóstico dos Transtornos do Espectro do Autismo é feito com base em duas grandes áreas do desenvolvimento: 1) Déficits clinicamente significativos e persistentes na comunicação social e nas interações sociais, e 2) Padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses e atividades. Ou seja, o diagnóstico não inclui atrasos ou deficiências no desenvolvimento motor ou, mais especificamente, no desenvolvimento das habilidades de coordenação motora fina. Porém, essa característica, apesar de não ser considerada no diagnóstico médico, é muito comum entre crianças e adolescentes com TEA.
Broun (2009) apontou que a conceitualização do Autismo como um transtorno motor foi inicialmente trazida a público em 1995 pelos pesquisadores Donnellan e Leary. Desde então, um crescente número de pesquisadores tem se voltado para as dificuldades motoras apresentadas por crianças com Autismo (Green, Baird, Barnett, Henderson, Huber & Henderson, 2002; Leary & Hill, 1996; Ming, Brimacombe & Wagner, 2007; Miyahara et al., 1997). Segundo Broun (2009), os pesquisadores encontraram significantes diferenças e anormalidades neuroanatômicas no cerebelo de pessoas com TEA, tanto em nível celular quanto estrutural. Essas diferenças causam anormalidades neurológicas que podem gerar os déficits nos movimentos e na execução de tarefas motoras pelos autistas (Allen & Courchesne, 2003; Cattaneo et al., 2007; Nayate, Bradshaw & Rinehart, 2005; Rodier, 2000). A autora afirma, ainda, que a disfunção motora é, atualmente, considerada por alguns pesquisadores (Mayes & Calhoun, 2003; Ming et al., 2007; Smith, 2004) como sendo um sinal mais brando ou sintoma associado de Autismo. Sintoma esse que não é considerado para o diagnóstico, mas é altamente prevalente no espectro.
Broun (2009) afirma que duas das principais dificuldades motoras apresentadas por autistas são: hipotonia (baixo tônus e força muscular) e apraxia (prejuízo na habilidade de executar movimentos hábeis, apesar de possuir a habilidade física e o desejo de executar). A autora discute que essas condições afetam diretamente a habilidade do indivíduo de usar suas mãos e tem um impacto significante sobre a habilidade do indivíduo de segurar e usar instrumentos de escrita.
Hans Asperger, em seu clássico artigo definindo a Síndrome de Asperger (Asperger, 1944/1991) descreveu quatro jovens que apresentavam prejuízos motores significantes. O autor enfatizou a pobre qualidade da escrita desses jovens. Segundo Broun (2009), indivíduos com Síndrome de Asperger[1] são, frequentemente, capazes de participar bem de atividades acadêmicas, embora apresentem dificuldades na escrita, tais como macrografia (letras grandes).
Tendo em vista essa dificuldade comumente encontrada na população diagnosticada com TEA, é fundamental que, na terapia individualizada, seja aplicado um programa de treino de habilidades motoras finas e treino grafomotor. Esse programa tem como objetivo ensinar habilidades motoras finas, relacionadas à coordenação motora, destreza, controle de força e propriocepção, que são pré-requisitos para o aprendizado de futuros movimentos necessários para atividades de vida diária e atividades acadêmicas, como, por exemplo: cortar alimentos, montar um prato, amarrar o cadarço, dobrar roupas, consertar objetos pequenos, desenhar, escrever, etc.
Para aplicação desse treino é necessário ter o programa detalhadamente descrito pelo analista do comportamento responsável, em parceria com o terapeuta ocupacional e o pedagogo da equipe de intervenção. Os materiais para as atividades devem ser acadêmicos (preparando a criança para esse contexto) e também lúdicos, ou seja, do interesse da criança (com temas e personagens que ela goste). Também é preciso separar possíveis reforçadores (objetos, alimentos ou atividades de interesse da criança) para serem utilizados como consequência após a execução de respostas esperadas, instalando e fortalecendo essas respostas.
No treino dessas atividades utilizamos o procedimento de Hierarquia de Dicas para evitar o erro (e, com ele, a desmotivação e o desinteresse na atividade). O aplicador deve partir da dica mais intrusiva (pegar na mão da criança e fazer todo o movimento com ela) e, gradualmente, ir passando para as dicas menos intrusivas (apenas direcionar o braço ou mão da criança para fazer o movimento correto; depois, apenas apontar o que a criança deve fazer, onde deve colar, encaixar, levar uma peça, etc.), até que a criança execute a tarefa de forma independente.
Essas atividades devem ser trabalhadas em contexto de Tentativas Discretas na terapia individualizada. Isto é, na mesa de terapia, com a criança atenta para o aplicador, esse apresenta uma das atividades descritas no programa (atividades grafomotoras ou de treino de habilidades motoras finas) e dá a instrução para a criança realizar a tarefa. Se necessário, o aplicador dá ajuda para isso. Imediatamente após cada resposta na tarefa, o aplicador elogia e disponibiliza um objeto, atividade ou alimento de interesse da criança.
Paralelamente ao treino em Tentativas Discretas, deve-se aplicar também o treino em contexto de Ensino Incidental que ocorre em ambiente natural, por exemplo, na escola. Nesse caso, por exemplo, a criança (que já aprendeu algumas habilidades motoras finas e grafomotoras na terapia) está na escola e o professor apresenta uma atividade grafomotora ou de treino de habilidades motoras finas para toda a turma e dá a instrução para as crianças realizarem a tarefa. Se necessário, o professor ou o AT (acompanhante terapêutico) dá ajuda para a criança executar a tarefa. Imediatamente após cada resposta na tarefa, o professor ou o AT elogia e deixa a criança continuar a atividade.
O Ensino Incidental também pode ocorrer em casa, por exemplo, durante um momento de brincar livre a criança pega um livrinho com atividades de pintura, cobrir pontilhados, ligar, desenhar, etc. O aplicador (pais ou cuidadores) se aproxima, senta-se com a criança e a estimula fazer uma das atividades do livro. Se necessário, o aplicador dá ajuda para isso. Imediatamente após cada resposta na tarefa, o aplicador elogia e deixa a criança escolher a próxima atividade que quer fazer.
O programa de treino de habilidades motoras finas deve envolver atividades que estimulem a preensão palmar, a força e a destreza manual como, por exemplo: colocar clipes no papel (pode-se estimular que a criança coloque os clipes coloridos em papéis com a mesma cor); pregar pregadores de roupa (sugere-se brincar de pregar os pregadores nas próprias roupas da criança e do aplicador); pegar objetos (Ex.: bolinhas de algodão) com pegadores de macarrão; etc.
Esse programa também deve focar o treino do movimento de pinça em atividades como: brincar de colocar a quantidade pedida de objetos pequenos (como miçangas, MMs, grãos de feijão, etc.) em potinhos ou formas de gelo; colocar moedas no cofrinho; colocar palitos de dentes no saleiro; colocar miçangas no barbante para fazer colares e pulseiras (enfiagem); jogos de alinhavo (passar cadarço nos buracos costurando uma imagem de interesse); colocar miçangas dentro da geleca ou da massinha para a criança procurar e tirar as miçangas; etc.
As habilidades necessárias para as atividades rotineiras também devem ser treinadas neste programa como, por exemplo, abrir e fechar zíper e botão; amarrar cadarço; abrir e fechar fivelas; velcro; etc. Existem brinquedos educativos que apresentam essas atividades, como no exemplo abaixo:
Preparando para o treino do recorte, começamos com o rasgar papéis, depois passamos para o recorte de tiras finas de papel, que exija apenas um movimento de abrir e fechar com a tesoura. Finalmente, seguimos para o recorte de tiras mais grossas, que envolvem mais de um movimento de abrir e fechar da tesoura. Em seguida, treinamos o recorte de formas geométricas retas e, por fim, formas circulares. Em alguns casos pode ser necessário começar esse treino com tesouras adaptadas, que exijam apenas o movimento de fechar a tesoura, pois ela abre sozinha (como um alicate). Segue um exemplo:
A colagem deve começar com cola bastão e depois passar para a cola líquida, que exige maior controle da força na mão. Sugere-se treinar o colar em espaço delimitado, já preparando para as atividades escolares. Os carimbos também são bons para treinar a força na mão e a noção de espaço, carimbando dentro de um espaço delimitado.
Com massinha pode-se estimular, além da destreza motora, a representação, ou seja, estimular que a criança modele algo da realidade, por exemplo: sol, casa, árvore, sorvete, pizza, menino, etc.
Em nível mais avançado, preparando para a escrita, deve-se trabalhar a perfuração, ou seja, colocar um desenho de interesse da criança sobre uma placa de isopor (pode-se usar bandejas de frios) e pedir que a criança fure o desenho com um lápis nos locais delimitados por pontos. Esta atividade trabalha a força na mão necessária para a escrita, o pegar corretamente no lápis e a precisão do movimento, afinal a criança deve posicionar o lápis no ponto delimitado antes de perfurar.
O treino de cobrir pontilhados também é precursor da escrita. Pode-se começar com linhas retas, depois linhas curvas, formas geométricas, desenhos de interesse da criança e, finalmente, números, letras e palavras. Outro treino interessante é o de traças em pranchas ou moldes vazados, como no exemplo abaixo:
Depois disso o treino da escrita segue para a cópia e o ditado, conforme o processo de alfabetização da criança. Vale lembrar que o processo de alfabetização não deve esperar que a habilidade grafomotora se desenvolva completamente e a criança consiga escrever. Se a escrita for difícil para a criança, a alfabetização deve seguir com auxílio de computadores e tablets (digitação) e, enquanto isso, paralelamente, dá-se continuidade ao treino grafomotor para chegar à escrita à mão.
O treino grafomotor deve envolver, ainda, a pintura dentro de espaços delimitados, começando com formas geométricas e, depois, passando para desenhos do interesse da criança e espaços gradualmente menores. Nesse treino usamos, inicialmente, o contorno saliente com barbante, palito de picolé, cola colorida (seca) ou cola quente (seca) que ajuda a criança a manter a pintura dentro do espaço delimitado. Com o tempo, este auxílio deve ser retirado. A pintura deve ser apresentada com diversos materiais, como: lápis de cor, cola colorida, tinta, giz de cera, etc.
Esse programa também envolve o treino do desenho, começando com atividades de cobrir desenhos em pontilhado, depois completar partes que faltam em um desenho simples, copiar desenhos e, finalmente, desenhar sem modelo.
As respostas a todas estas atividades devem ser registradas, bem como o tipo de ajuda necessário em cada atividade. Assim, o desempenho da criança poderá ser analisado e, com base nesta análise, serão definidos os próximos passos.
Referências Bibliográficas:
Allen, G. & Courchesne, E. (2003). Differential effects of developmental cerebellar abnormality on cognitive and motor functions in the cerebellum: An fMRI study of autism. American Journal of Psychiatry, 160, 2.
Asperger, H. (1991). “Autistic psychopathy” in childhood. In U. Frith (Trans. & Annot.),Autism and Asperger syndrome (pp. 37-92). Cambridge, UK: Cambridge University Press. (Trabalho original publicado em 1944).
Broun, L. (2009). Take de pencil out of the process. Teaching Exceptional Children, 42(1), pp. 14-21.
Cattaneo, L., Fabbri-Destro, M., Boria, S., Pieraccini, C., Monti, A., Cossu, G. et al. (2007, Nov. 6). Impairment of action chains in autism and its possible role in intention understanding. Proceedings of the National Academy of Science, 104(45), 17825-17830. Disponível em www.pnas.org .
Donnellan, A. & Leary, M. (1995). Movement differences and diversity in autism/mental retardation: Appreciating and accommodating people with communication and behavior challenges. Madison, WI: DRI Press.
Green, D., Baird, G., Barnett, A. L., Henderson, L., Huber, J. & Henderson, S. E. (2002). The severity and nature of
motor impairment in Asperger syndrome: A comparison with specific developmental disorder of motor function. Journal of Child Psychology and Psychiatry, 43(5), 655-668.
Leary, M. R. & Hill, D. A. (1996). Moving on: Autism and movement disturbance.Mental retardation, 34, 39-53.
Mayes, S. & Calhoun, S. (2003). Ability profiles in children with autism: Influence of age and IQ. Autism, 7, 65.
Ming, X., Brimacombe, M & Wagner, G. C. (2007). Prevalence of motor impairment in autism spectrum disorder. Brain & Development, 29, 565-570.
Miyahara, M., Tsujii, M., Hori, M., Nakanishi, K., Kageyama, H. & Sugiyama, T. (1997). Brief report: Motor incoordination in children with Asperger syndrome and learning disabilities. Journal of Autism and Developmental Disorder, 27, 595-603.
Nayate, A., Bradshaw, J. L. & Rinehart, N. L. (2005). Autism and Asperger’s disorder: Are they movement disorders involving the cerebellum and/or basal ganglia? Brain Research Bulletin, 67, 327-334.
Rodier, P. (2000, February). The early origins of autism. Scientific American, 282(2), 56-63.
Smith, I. M. (2004). Motor problems in children with autism spectrum disorders. Em D. Dewey & D. E. Tupper (Eds.). Developmental motor disorders: A neuropsychological perspective. (pp. 152-168). New York: Guilford.
[1] De acordo com o DSM V, o diagnóstico de Síndrome de Asperger passou a fazer parte do diagnóstico de TEA – Transtornos do Espectro do Autismo.
Autismo Saúde Mental e Desenvolvimento Atípico Psicologia Infantil e do Desenvolvimento
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