segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Tradição indígena faz pais tirarem a vida de crianças com deficiência física


Publicado por Maria Célia Becattini



A prática acontece em pelos menos 13 etnias indígenas do Brasil.Uma tradição comum antes mesmo de o homem branco chegar ao país.

Um assunto da maior importância: o direito à vida. Você acha certo matar crianças recém-nascidos por causa de alguma deficiência física?

Pois saiba que isso acontece no Brasil e não é crime. A Constituição, nossa lei maior, assegura a grupos indígenas o direito à prática do infanticídio, o assassinato de bebês que nascem com algum problema grave de saúde.

Para os índios, isso é um gesto de amor, uma forma de proteger o recém-nascido, mas tem gente que discorda.

Um projeto de lei que pretende erradicar o infanticídio já foi aprovado em duas comissões na Câmara Federal e agora vai para votação no plenário.

Do outro lado, os antropólogos defendem a não interferência na cultura dos índios. Os repórteres do Fantástico foram investigar essa questão sobre a qual pouco se fala. E descobriram que a morte desses recém-nascidos mudou para pior o mapa da violência no Brasil.

A cidade mais violenta do Brasil fica no interior do estado de Roraima. Chama-se Caracaraí e tem só 19 mil habitantes.

De acordo com o último Mapa da Violência, do Ministério da Justiça, em um ano, 42 pessoas foram assassinadas por lá. Entre elas, 37 índios, todos recém-nascidos, mortos pelas próprias mães, pouco depois do primeiro choro.

A partir de uma porteira, o Fantástico entrou na terra dos ianomâmis, uma área de 9,6 milhões de hectares, maior do que Portugal. Lá, vivem 25 mil índios em 300 aldeias numa floresta inteiramente preservada.

O filho de uma mulher ianomâmi vai fazer parte da próxima estatística de crianças mortas logo após o nascimento. Há duas semanas, ela começou a sentir as dores do parto, entrou na floresta sozinha e horas depois saiu de lá sem a barriga de grávida e sem a criança.

Os agentes de saúde que trabalham lá disseram, sem gravar, que naquela noite aconteceu mais um homicídio infantil, o infanticídio.

O infanticídio indígena é um ato sem testemunha. As mulheres vão sozinhas para a floresta. Lá, depois do parto, examinam a criança. Se ela tiver alguma deficiência, a mãe volta sozinha para a aldeia.

A prática acontece em pelos menos 13 etnias indígenas do Brasil, principalmente nas tribos isoladas, como os suruwahas, ianomâmis e kamaiurás. Cada etnia tem uma crença que leva a mãe a matar o bebê recém-nascido.

Criança com deficiência física, gêmeos, filho de mãe solteira ou fruto de adultério podem ser vistos como amaldiçoados dependendo da tribo e acabam sendo envenenados, enterrados ou abandonados na selva. Uma tradição comum antes mesmo de o homem branco chegar por lá, mas que fica geralmente escondida no meio da floresta.

O tema infanticídio ressurge agora por ter se destacado no Mapa da Violência 2014, elaborado com os dados de dois anos atrás.
O autor do levantamento feito para o Ministério da Justiça, o pesquisador Júlio Jacobo, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, não tinha ideia da prática.

“E aí, então, comecei a pesquisar efetivamente com as certidões de óbito. Registravam que crianças de cor ou raça indígena, de 0 a 6 dias de idade. E começamos a ver que realmente era uma cultura indígena meio não falada, meio oculta”, diz o pesquisador.

O secretário de Segurança Pública de Roraima, Amadeu Soares, explica por que o seu estado aparece, pela primeira vez, entre os mais violentos do Brasil.

Fantástico: Por que no ano de 2012 teve essa evolução, esse número tão grande?

Amadeu Soares: Porque foi o ano que a Secretaria Especial começou a fazer o trabalho de registro desses infanticídios.

E foi assim que Caracaraí, no interior de Roraima, se transformou no município mais violento do Brasil. São 210 homicídios para cada 100 mil habitantes. A média nacional é 29 homicídios para cada 100 mil habitantes.

Pituko Waiãpi é um sobrevivente. Ele nasceu há 37 anos numa aldeia waiapi, localizada no interior do Amapá. Tinha paralisia infantil e estava condenado ao sacrifício.

“A minha família não aceitava por causa da deficiência. Então, a Funai me tirou de lá”, conta.

O garoto cresceu entre os homens brancos e, aos sete anos, foi levado de volta para a tribo.

“Uma assistente social não entendia do costume da aldeia. Ela não sabia que ele não podia mais voltar e o mandou de volta”, conta Silvia Waiãpi, irmã de Pituko.

O garoto vivia carregado pela mãe, pai ou irmão mais velho.

“E aí um dia minha mãe cansou de me carregar e deu para o meu pai. Quando foi na hora de atravessar o rio, meu pai começou a ameaçar que eu não servia para nada, que eu merecia ser morto. A minha mãe escutou isso e gritou que não era para ele fazer isso comigo”, conta Pituko.

“A minha mãe o deu para um dentista e a única palavra que ele sabia falar em português era: ‘Embora. Embora. Embora’”, diz a irmã.

Ele só voltou a ver os pais quando tinha 21 anos.

“A minha mãe sentou do meu lado e disse: ‘Meu filho, tu lembra daquele tempo que aconteceu?’. Eu falei: ‘Lembro’. Aí ela perguntou: ‘Você tem raiva dele?’. ‘Eu, não. Eu gosto do meu pai’. Isso é cultura de vocês. Quem sabe vocês estavam fazendo o certo e eu não estava sofrendo mais”, conta Pituko.

“Como é que é carregar um deficiente físico nas costas sem cadeiras de rodas? No meio do mato?”, comenta a irmã de Pituko.

A irmã de Pituko explica: para o seu povo, o infanticídio não é um ato cruel.

“Era um ato de amor. Amor e desespero. Porque você não quer que um filho seu continue sofrendo. Você quer que ele sobreviva, mas não se não há como?”, diz ela.

“Não se pode atribuir a isso qualquer elemento de crueldade. Se uma pessoa começa já no nascimento conter deformações físicas ou incapacidades muito grandes, você vai ter sempre em si um marginal”, avalia o antropólogo João Pacheco.

Na visão do antropólogo, este garoto é um exemplo do que seria um marginal na comunidade indígena. Ele sofre de um problema neurológico.

“Essa criança nasceu, segundo informações, sem nenhum sinal de qualquer tipo de deficiência. Eles não rejeitaram ela, mas ao mesmo tempo ela não fica como as outras crianças. Fica mais escondidinha”, explica Tiago Pereira, enfermeiro da Secretaria deSaúde Indígena.

Por não ter percebido a deficiência, a mãe deu de mamar ao filho.

Esta é uma cena da maior importância na vida de um pequeno ianomâmi. Quando a mãe amamenta o filho, é como se tivesse dando a ele a certidão de nascimento, é que ele está sendo aceito por ela e pela comunidade.

Os índios acreditam que só durante esse ritual o bebê se torna um ser vivo e, graças a essa primeira mamada, Kanhu Rakai, filha de Tawarit, está viva hoje.
“Se tivesse anotado de pequeno, poderia estar enterrado”, afirma Tawarit Makaulaka Kamaiurá, pai de Kanhu Rakai.

Quando nasceu, a família, que faz parte da etnia kamayurá, não notou que Kanhu Rakai desenvolveria qualquer problema.
“Ela nasceu normal. Depois de cinco anos, ela começou a ir enfraquecendo mais”, conta Tawarit.

Kanhu Rakai tinha distrofia muscular progressiva, uma doença degenerativa que dificulta cada dia mais os movimentos da garota, e os pais se sentiam pressionados pela comunidade para matar a criança.

Fonte: Fantástico (G1)

Nos dias de hoje o infanticídio (prática que resulta na morte de crianças) ainda é uma realidade em algumas tribos indígenas. Esse assunto, por ser polêmico, é contestado, e em alguns casos, tratado como inverdade ou apenas casos isolados. Em outras situações, há pesquisadores que defendem que o infanticídio faça parte da cultura indígena e por isso deve ser mantido. O papel deste documentário não é fazer um julgamento de valor sobre as práticas nas culturas indígenas. QUEBRANDO O SILÊNCIO se propôs a escutar e a registrar as manifestações de indígenas que não querem mais praticar o infanticídio e, por isso desejam ser ouvidos e receber ajuda. No momento que o índio se manifesta, a sociedade tem a obrigação de interagir com ele e trazer soluções e alternativas para o infanticídio.

Dirigido pela jornalista indígena Sandra Terena, este documenário é resultado de mais de dois anos de entrevistas em diversas regiões do país, como o Alto Xingu, por exemplo. Por ter a direção de uma realizadora indígena, optou-se propositalmente em ouvir apenas os relatos de índios que sentiram na pele o sofrimento causado pelo infanticídio.



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