domingo, 16 de novembro de 2014

‘O mundo seria mais pacífico com todas as crianças na escola’, diz Nobel da Paz

Publicado por Maria Célia Becattini
Indiano Kailash Satyarthi elogia o trabalho do Brasil, apontado por ele como um exemplo a ser seguido
POR CAROLINA LIMA
16/11/2014 7:00


RIO — O indiano Kailash Satyarthi tem uma vida inteira dedicada à luta pelos direitos das crianças, causa que levou ele a vencer o Prêmio Nobel da Paz deste ano. Ele começou o combate ao trabalho infantil aos 25 anos — hoje ele tem 60 —, após desistir de uma promissora carreira de engenharia e decidir seguir um interesse que despertou quando ele tinha 5 anos, e ficou chocado ao ver um menino trabalhando como engraxate e descobrir que nem todos estudavam como ele.

Desde então, o seu foco é um só: as crianças. Em entrevista ao GLOBO por telefone, ele contou que elas são sua maior motivação: “Quando vejo milhares de crianças que perderam todas as esperanças na vida voltarem para casa, essa é a minha inspiração.” Movido por essa preocupação, Satyarthi já libertou mais 80 mil crianças do trabalho forçado em operações de resgate. Além disso, ressalta que centenas de milhares de menores hoje estão livres da escravidão, do tráfico humano e prostituição por causa de ações legais, mobilizações sociais, campanhas de educação e aconselhamento dos pais, além de outras ações desenvolvidas por ele e pelas organizações com as quais trabalha.

Durante os vários anos de luta, o Prêmio Nobel fundou instituições que são referência na área, como a a Marcha Global contra o Trabalho Infantil (a maior rede da sociedade civil para as crianças exploradas), a Bachpan Bachao Andolan, a Campanha Global para a Educação, e a Fundação Rugmark, agora conhecida como GoodWave. Mas, em diversos momentos da entrevista, ele ressaltou que o trabalho em defesa dos direitos das crianças deve ser baseado em parcerias genuínas entre os governos, empresas e sociedade civil. E os países desenvolvidos e em desenvolvimento também devem se unir em torno de abordagens positivas, a partir de alterações de leis, benefícios sociais e construção de uma consciência global, em vez de tentar ações punitivas como as sanções.

Sayarthi ainda aponta que a cooperação mútua é a única forma de quebrar a relação triangular de causa e consequência que há entre pobreza, analfabetismo e trabalho infantil. Nesse sentido, ele afirmou que a Índia tem avançado na questão, e o próprio Nobel foi convidado pelo primeiro-ministro Narendra Modi a pensar em medidas concretas para a defesa dos direitos das crianças. Mas a base de toda essa rede de trabalho pela defesa dos direitos das crianças deve ser a educação, diz Satyarthi.

Como o Prêmio Nobel pode ajudá-lo contra o trabalho infantil?

O Prêmio Nobel é o melhor reconhecimento para centenas de milhares de crianças que tiveram a infância, a liberdade e a educação negadas. É uma ótima oportunidade e também dá força e poder para todas as organizações civis que lutam pelos direitos e melhores condições de vida para as crianças. Com a premiação, o problema do trabalho infantil, da escravidão, da prostituição, do casamento forçado, do tráfico humano, entre outros ganharam a atenção global, mas ainda não há como quantificar a repercussão do prêmio, pois faz pouco tempo. Na Índia, por exemplo, temos novidades positivas em alguns estados: a polícia adotou algumas ações em favor das crianças, há comissões trabalhando pelos direitos delas, e organizações civis têm mencionado que estão inspiradas pelo Nobel.

Qual a responsabilidade dos países desenvolvidos na luta contra o trabalho infantil? O que eles podem fazer para mudar o cenário atual?

É muito importante que os países industrializados sejam mais comprometidos e responsáveis em cumprir as promessas feitas sobre as questões infantis, principalmente a educação. Também é essencial que os governos construam parcerias genuínas com os países em desenvolvimento na tentativa de resolver o problema do trabalho infantil. Isso faz parte da convenção ILO 182 que foi ratificada por todos os países industrializados. Esse acordo define que deve haver uma cooperação mútua global e dá mais responsabilidade aos países ricos para ajudar os países em desenvolvimento a achar soluções para a erradicação do trabalho infantil e estabelecer uma educação para todas as crianças.

Proibir a comercialização de produtos de empresas envolvidas com o trabalho infantil é uma forma de combate?

As sanções dos países desenvolvidos não funcionam. É preciso uma abordagem mais cooperativa e construtiva, ao invés da punição com sanções. Além disso, os países ricos devem atuar como suporte para os países em desenvolvimento, enquanto esses devem demonstrar intenções genuínas, assim como visão política e ações para resolver o problema. Os dois lados devem avançar em uma abordagem positiva. O que experimentei nos últimos anos é que as sanções não funcionam e se tornam mais opressivas e regressivas, em vez de tentar achar soluções para a questão. Além disso, as empresas, especialmente a indústria global, devem ser mais responsáveis, assegurando que não haja nenhuma criança trabalhando na sua cadeia de produção ou logística. Por outro lado, é preciso que as corporações assegurem que, enquanto estiverem ganhando dinheiro às custas dos países em desenvolvimento e operando nesses locais, devem investir e ajudar na educação. É possível que os setores privados e público trabalhem juntos na tentativa de achar soluções para esse mal. Esse trabalho não deve ser feito por uma frente sozinha, nem pela sociedade civil, nem pelo governo, nem pelas empresas.

Sobre a Índia, como o governo do primeiro-ministro Narendra Modi pode ajudar na luta contra o trabalho infantil? Ele anunciou alguma medida nesse sentido?

Até agora, as ações e compromissos do novo primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, mostram um cenário de esperança para a população e à sociedade civil. Ele tem se mostrado consciente sobre a educação e parece ter entendido que a erradicação do trabalho infantil é importante para o desenvolvimento econômico do país. Além disso, ele assumiu a luta contra vários problemas sociais, como o das crianças. Mas no futuro, temos que construir mais medidas concretas, além de considerar as crianças forçadas a trabalhar como um problema que precisa de uma abordagem própria. Fui chamado para pensar, junto com o governo, em medidas concretas e tentar fazer novas leis. Já havia uma parceria nossa com o governo anterior, e vai continuar com esse novo. Como já havia dito, não há como trabalhar sozinho, é preciso construir parceria e confiança.

Qual o maior projeto em andamento hoje?

O maior trabalho hoje são as questões políticas. Os países devem ter boas leis, e as que existem devem ser implementadas. Desde o governo passado, tentamos implementar uma nova legislação sobre o trabalho infantil. Até agora, o trabalho tem sido positivo, com o governo passado e o atual receptivos às sugestões. Estamos levando uma proposta para apresentar ao Parlamento, e pretendemos fazer o quanto antes.

E quais são as perspectivas para outros países em desenvolvimento, como o Brasil?

O Brasil é um dos países que lançou o exemplo mais promissor no combate ao trabalho infantil. Começou com o Bolsa Escola que virou o Bolsa Família, e isso através da mudança na legislação. Nos últimos 20 anos, muito progresso foi feito no país, em termos de novas leis, de inserir as crianças nas escolas, expansão das áreas de atuação dos programas sociais. Mas, o mais importante no país foi a coordenação conjunta entre os setores público e privado, que têm um bom diálogo e interação. O país está no caminho certo, mas ainda é preciso medidas concretas que melhorem a qualidade da educação, tirem as crianças do setor agrícola do trabalho doméstico e da força de trabalho. O Brasil mostrou o caminho para outros países.

E em outros países?

Temos bons exemplos também em outros países, como Quênia, Nigéria, México. O cenário global está bem melhor, muitos países assinaram compromissos de acabar com o trabalho forçado, de trabalhar em conjunto. Saímos de 260 milhões de crianças no trabalho forçado para 168 milhões. E essa queda ocorre ao mesmo tempo em que a população de crianças está aumentando. Ao mesmo tempo, estamos vendo uma queda no número de crianças fora das escolas, de 140 milhões para 57 milhões: mais da metade. Ademais, a maioria dos países assinou a convenção ILO, e muitas empresas têm programas de iniciativa de responsabilidade na educação de crianças vítimas de trabalho forçados. Há muitos aspectos positivos no cenário atual.

Como é feito o trabalho para libertar as crianças do trabalho forçado e inseri-las na escola?

As crianças têm o direito a educação na maioria dos países e nós tentamos usar a lei a nosso favor. Nós trabalhamos com as comunidades e com os pais na tentativa de instruí-los. A educação tem que ser livre para todas as crianças, deve ser de qualidade, construir o conceito de cidadania global, além de tornar as crianças cidadãos mais responsáveis. Os pais são incluídos nesse processo de forma muito intensa e na maioria das vezes são muito receptivos ao nosso trabalho. É muito triste que 168 milhões de crianças possuam trabalhos de meio período, enquanto muitos dos pais estão desempregados. Nós tentamos fazê-los entender que, por causa do trabalho de seus filhos, eles estão desempregados e são mal remunerados. Como as crianças são uma mão de obra barata, os empresário deixam de pagar melhores salários para os outros trabalhadores.

Qual o maior obstáculo enfrentado hoje na luta pelos direitos das crianças?

O maior obstáculo na luta que enfrento é a visão política global. Tenho que lutar para trazer uma visão política e social em relação às crianças.

E qual sua inspiração?

As minhas inspirações são todas as crianças. Quando vejo as crianças libertadas, isso é uma tremenda inspiração para mim. Quando vejo milhares de crianças, que perderam todas as esperanças na vida, voltarem para casa, essa é a minha inspiração. O mundo seria bem melhor se todas as crianças fossem para a escola. Mas é preciso educação com cidadania global, com ética, responsabilidade civil. Com isso tudo, o mundo seria mais pacífico do que nunca.



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